Nova era
Talvez seja tempo de voltar à blogosfera. A ideia inicial de espelhar aqui o que chamava de "construções transdisciplinares" não me abandona, no entanto, a minha consciência está hoje mais disposta a admitir a inclusão de inúmeras perpectivas. Continuamos no Terceiro incluído.
Há cerca de duas semanas, um amigo enviou-me o draft de um livro que vai publicar com pequenos contos sobre o tema da morte num estilo que eu situaria entre Kafka e alguns dos nossos surrealistas. Diverti-me bastante com a leitura e acho o conjunto dos contos bastante interessante. Mas não é para fazer uma recensão crítica que abro este assunto. É sobre o Borges. Jorge Luís Borges (Buenos Aires, 24.08.1899 - Genebra, 14.06.1986). Um personagem da escrita que conheço bastante menos do que gostaria, mas cujo universo me fascina de uma forma arrebatadora. E o Borges porquê? É que o livro abre com uma citação em epígrafe que é do Borges. O mote vem todo a propósito e não teria feito qualquer reparo, não fora uma grosseira incorrecção verbal: "aceitarei-a" (sic) em vez de aceitá-la-ei.
“Eu não temo a morte. Ela não me causa medo nem tristeza. Quando me sinto abatido penso: como posso estar triste se essa grande aventura que é a morte me aguarda? Se eu tiver sorte, serei aniquilado, apagado completamente, se não for, se houver outra vida, aceitarei-a como aceitei esta; talvez seja melhor. Não sabemos nada, mas podemos imaginar que há uma aventura além da morte.” Jorge Luis Borges.
Tentei verificar, atribuindo o erro a alguma tradução menos idónea. Encontrei várias vezes a mesma forma em citações de origem brasileira (com a variante "aceitarei" que não sendo a ideal, é... aceitável) e em nenhuma se referia a fonte. Procurei vários textos em Borges que fala da morte, sem resultado. Quase me convenci que poderia estar num dos capítulos do Aleph que esquadrinhei de ponta a ponta (de Aleph a Tav, só para ilustrar que também fui ver o significado de Aleph e o alfabeto hebraico) e nada encontrei.
Lembrei-me então de colocar no google o que eu imaginava ser o texto na língua castelhana (isto traz também outras história porque o Borges escrevia muita coisa, primeiro em inglês, e, também porque a língua inglesa também vem associada à citação) e logo me apareceu a citação e o seu contexto.
Yo no temo a la muerte. No le temo ni me entristece. Cuando estoy triste pienso: cómo puedo estar triste si me espera esa gran aventura que es la muerte. Si tengo suerte, seré aniquilado, borrado totalmente, y si no, si hay otra vida, la aceptaré como he aceptado ésta. Peor que ésta no será. Hasta puede ser mejor. No sabemos nada, pero podemos pensar que hay una aventura más allá de la muerte.
Trata-se de algo proferido na última conferência de JLB, em 5 de Setembro de 1985, no Colegio Ward, numa cidade chamada Ramos Mejía, a cerca de dez quilómetros de Buenos Aires. Nem sequer aparece como fazendo parte do texto da conferência, mas das respostas a perguntas da assistência sobre vários temas que Juan Carlos Dido transcreveu, muitos anos depois.
A outra história ligada à língua inglesa é que JLB teria sido convidado para fazer a conferência em inglês para os alunos mais avançados e acabou a fazê-la em castelhano para todos, porque houve um protesto na escola no sentido de se democratizar a conferência.
E a que propósito vem tudo isto? Provavelmente, a propósito de algo tão aleatório que é mais fácil responder que é a propósito de coisa nenhuma ou, a minha resposta mais convincente, porque sim.
É que a morte é um tema tão complexo e tão capaz de nos convocar para a discussão que poderá ser o assunto mais vivo de qualquer simpósio, desde o jantar familiar de natal ao plenário parlamentar.
Hei-de voltar a este tópico. Se não morrer entretanto. Mesmo assim, há quem acredite que um bom escritor só consegue viver da escrita depois de morto.

